Gestão de Igreja:

uma reflexão sobre bases antigas e modernas.

Artigo publicado na Revista Evangélica
FÉ CRISTÃ, Mossoró/RN,
Ano 3, nº. /2002.

O tema "gestão de igreja" é polêmico e controverso, principalmente quando tratado no clima dos interesses pessoais que permeiam as organizações sujeitas às disputas pelo poder.

Seria hipocrisia afirmar que o ambiente eclesiástico é imune a interesses pessoais e corporativistas e às lutas pelo poder! Mas, é plausível admitir-se que, acima dos interesses meramente pessoais, grupais e institucionais, o querer do Espírito Santo ainda prevaleça entre homens de Deus remanescentes de uma linhagem sacerdotal remota, felizmente, ainda não totalmente extinta.

Aceitando-se a premissa de que o Espírito do Senhor continue a nortear as decisões da Igreja nesse novo século, nada mais natural que buscar nas Escrituras o modelo de gestão eclesiástica extraído do legado apostólico e da prática observada na Igreja Primitiva.


1 - O modelo de gestão de igrejas no Novo Testamento

"Nos séculos primitivos as igrejas locais, embora nunca lhes fal­tando o sentimento de pertencerem a um só corpo, eram comunidades independentes e com governo próprio, que mantinham relações umas com as outras, não por uma organização política que as reunisse todas, mas sim uma comunhão fraternal através de visitas de dele­gados, intercâmbio de cartas, e alguma assistência recíproca indefinida na escolha e consagração de pastores". (PEARLMAN, p. 360)

O texto acima foi citado no livro "Conhecendo as Doutrinas da Bíblia", de autoria do emérito professor e consagrado escritor judeu-cristão Myer Pearlman, cujo pensamento está sintetizado em suas próprias palavras:

Ø       "As primeiras igrejas eram democráticas em seu governo..."  E comenta, com uma dose de saudável ironia: "uma circunstância natural em uma comunidade onde o dom do Espírito Santo estava disponível a todos, e onde qualquer e toda pessoa podia ser dotada de dons para um mi­nistério especial."

Ø       "Nos dias primitivos não havia nenhum governo centralizado... Cada igreja local era autônoma e administrava seus próprios negócios com liberdade";

Ø       "Ao mesmo tempo que cada igreja era independente da outra, quanto à jurisdição, as igrejas do Novo Testamento mantinham relações cooperativas uma com as outras." (Cita, como referências: Rm 15.1; 26-27; 2Co 8.19; Gl 2.10; 3Jo 8.

É extraordinário observar que, apesar desse livro ser o texto básico do ensino de teologia sistemática na quase totalidade dos seminários e escolas teológicas do País, a prática corrente contraria as lições extraídas do mesmo. É inadmissível que seja por falta de clareza de pensamento do autor.

Não bastasse a argumentação já exposta, Pearlman enfatiza:

"Vemos claramente que no Novo Testamento não há apoio para uma fusão de igrejas em uma 'máquina eclesiástica' governada por uma hierarquia." (pág. 359).

Mesmo assim, admite-se o questionamento em torno da consistência desse modelo à luz da sociologia da religião. Afinal, a busca pelo saber - desde que isento de sentimentos menores - não pode ser qualificado como pecado!


2 - Descentralizando as grandes igrejas

A proliferação de igrejas - notadamente na última metade do Séc. XX - é um fenômeno latente. À margem desse processo, as grandes corporações eclesiásticas têm encetado uma luta tenaz para manter a unidade de governo sobre as centenas de igrejas e congregações geradas ao longo dos anos.

Paralelamente, coexistem dois modelos, sem que haja uma manifestação clara da ciência da religião sobre qual deles é preferível; mesmo que, à luz da Bíblia, esteja evidente o modelo de gestão adotado com pleno sucesso pela igreja dos apóstolos.

No livro "Su iglesia puede crecer", Peter Wagner (WAGNER, p. 128) cita uma pesquisa desenvolvida pelo sociólogo da religião Richards Meyers, em Indiana/EUA. Nesse experimento, o pesquisador dividiu um determinado número de pastores em dois grupo: o primeiro, comprometeu-se a reunir duas classes similares da Escola Dominical, sempre que houvesse perda de um professor; o segundo, que admitiria novos professores, de modo a criar uma nova classe para cada departamento da ED.

Dessa forma, dois modelos opostos seriam observados: no primeiro, haveria diminuição do número de classes, já que duas delas ficariam reunidas sob a regência de um mesmo mestre (ou seja, centralização); no segundo, aumento do número de classes, mediante a subdivisão das anteriormente existentes (ou seja, descentralização). Ao final de um ano, os resultados seriam comparados.

Findo esse período de tempo, resultou que, no primeiro grupo, as classes reunidas haviam decrescido numericamente, até atingir o tamanho aproximado de uma das classes originais; e, no segundo, as classes haviam crescido até atingir o tamanho que tinham, antes da separação. A tese defendida pelo sociólogo confirmou-se: se uma igreja multiplica seu número de congregações de um modo sistemático e planejado, dando condições e liberdade para que as mesmas se desenvolvam, com segurança essa igreja crescerá mais rapidamente.

O autor manifesta seu parecer conclusivo, após a realização de outras experiências em sua própria igreja, nos Estados Unidos:

"A autogestão é necessária", afirma Wagner, "ainda que seja difícil de ser aceita em Igrejas como a Episcopal e a Presbiteriana. E pode ser bem mais difícil para igrejas que não tenham adotado a forma de governo Congregacional." (WAGNER, p. 130).

Em essência, a descentralização do governo eclesiástico, além de estar em acordo com o modelo bíblico, está respaldada por experimentos científicos, podendo gerar resultados extremamente satisfatórios.


3 - Uma breve análise do modelo de governo assembleiano.

É difícil fazer uma análise da forma de governo da Assembléia de Deus (AD), por duas razões bem distintas. Primeira, porque mesmo entendo que, na prática, inexistem formas "puras" de governo, o modelo assembleiano não se molda aos paradigmas observados ao longo da história e destacados na literatura. Segunda, porque não é fácil manter total isenção ao analisar-se a maior denominação evangélica do País, indiscutivelmente responsável por fortes influências no ambiente religioso (no íntimo das pessoas sempre houve sentimentos gratuitos de admiração ou aversão pelos "impérios" constituídos ao longo da história).

Mesmo assim, é válido tentar compreender o "modelo assembleiano", inicialmente comparando-o, mesmo que superficialmente, com as formas tradicionais de governo eclesiástico:

1) O modelo episcopal ou prelático caracteriza-se pela centralização do poder em mãos do clero mais elevado (os prelados). Apesar de alguns líderes assembleianos assumirem postura de "bispos" e suas "igrejas sede" se assemelharem a "dioceses", o modelo assembleiano dista bastante da rigidez hierárquica dos católicos romanos ou dos anglicanos (exemplos mais destacados desse gênero); como também não adota a formalidade litúrgica do poder episcopal.

2) O governo presbiteriano tem como característica predominante as tomadas de decisão nos concílios, sínodos e presbitérios, fóruns nos quais se assentam a elite da igreja (daí, esse modelo também ser denominado de oligárquico). Isto não ocorre na forma de gestão das AD's. Apesar dos presbíteros assembleianos gozarem de honra e estima, a decisão final só lhes cabe quando no exercício da função pastoral (mesmo assim, na maioria das AD's, os presbíteros atuam sob a supervisão de um pastor). Por outro lado, se algumas 'oligarquias' têm sido identificadas no meio assembleiano, é fácil constatar que não foram legalmente constituídas; mas sim compostas pela via da informalidade e do interesse de grupos.

3) O forma de governo congregacional fundamenta-se no princípio das decisões emanadas da maioria dos membros. Cada igreja, individualmente, administra seus próprios negócios (razão pela qual também recebe o nome de independente). Esse foi o modelo orientado pela igreja sueca para implantação na AD brasileira. Porém, os pioneiros fugiram desse modelo, o que gerou conflitos internos e externos que só foram minimizados quando da primeira Convenção Geral, realizada na Cidade do Natal, em 1930 ( ocasião na qual as igrejas do Norte e do Nordeste foram entregues aos obreiros nacionais).

Mas, afinal, qual é a forma de governo da AD?

Em sua tese de Doutorado em Sociologia "Protestantes e Política no Brasil", Paul Freston apresenta uma visão histórico-sociológica do pentecostalismo brasileiro e, particularmente, da Assembléia de Deus. Nesse trabalho (publicado no livro "Nem Anjos nem Demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo" ), o pesquisador agrega informações e publica suas conclusões sobre o "modelo de governo assembleiano".

Afirma esse Autor:

"O sistema de governo da AD pode ser caracterizado como oligárquico e caudilhesco. Surgiu para facilitar o controle pelos missionários e depois foi reforçado pelo coronelismo nordestino. A AD, na realidade, é uma complexa teia de redes compostas de igrejas-mães e igrejas e congregações dependen­tes. Cada rede não habita necessariamente uma área geográfica contígua, o que dá margem a controvérsias constantes sobre 'invasão de campo'. O pastor-presidente da rede é, efetiva­mente, um bispo, com talvez mais de cem igrejas e uma enorme concentração de poder." (FRESTON, p. 86).

Na defesa de sua tese, Freston recorre ao pensamento de Judith Hoffnagel (autora de uma tese de doutoramento na Indiana University/EUA, intitulada: "The Believers: Pentecostalism in a Brazilian City") segundo a qual "embora aconselhado pelo ministério, o pastor-presidente permanece a fonte última de autoridade em tudo... assim como o patrão da sociedade tradicional que, mesmo cercado de conselheiros, maneja sozi­nho o poder."

Em síntese, para Freston, na visão estratégica do governo 'oligárquico e caudilhesco' assembleiano, "esse sistema de feudos é uma forma de manter o crescimento da igreja como um todo sem tocar na estrutura do poder."

O estudo trata, também, acerca da Convenção Geral das AD no Brasil (CGADB), observando que, apesar de ser considerada "órgão má­ximo da denominação", não tem poder legal sobre as Conven­ções Estaduais, não recebe subvenções das mesmas e não tem poderes para designar ou substituir os pastores em suas filiadas.

Ressalta que as Convenções e Ministérios, na realidade, estão sob o poder dos "pastores-presidentes" (líderes das "igrejas-mãe") responsáveis por dezenas ou centenas de igrejas e suas respectivas congregações. Na visão de Freston (p. 87), isso representa a apro­ximação sectária ao extra "ecclesiam nulla salus": o modelo assemelha-se ao católico romano, no qual os que rompem com o mesmo são considerados rebeldes e excluídos.

Conclui ainda que, historicamente, esse modelo tem gerado insatisfações e acusações próprias dos regimes caudilhistas e gerontocráticos, redundando em cismas e divisões. E que, apesar dos crescentes sinais de enfraquecimento do modelo, a renovação parece lenta demais e a AD se distancia da moderna gerência praticada na sociedade urbana, o que a coloca cada dia mais próximo de um colapso administrativo, em meio a uma fase internamente conturbada.
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José Gilson de Oliveira é o pastor presidente da Assembléia de Deus - Ministério da Plenitude, em Natal/RN; é mestre em teologia; na vida secular é professor e engenheiro civil, pós graduado em engenharia sanitária e em administração (http://www.gilson.pro.br)