Crianças: brincando de violência


Artigo publicado em parceria com o
Rev. Gustavo Gilson Sousa de Oliveira,
no Jornal Mensageiro da Paz / CPAD.

INTRODUÇÃO

Nos últimos meses os jornais e a televisão do mundo inteiro têm chamado a atenção dos seus espectadores através do noticiamento de algumas tragédias, massacres e crimes bárbaros. Nada de novo, a não ser o fato de que em boa parte desses episódios os maiores protagonistas são crianças ou adolescentes, que executam crimes com requintes de crueldade. Desde o estripamento de um vendedor de seguros de meia idade por um casal de adolescentes nova-iorquinos, no coração do Central Park; passando pelo incêndio do índio Gaudino em Brasília; chegando até o recente massacre de crianças por seus colegas de escola, novamente nos EUA, não é pequena a lista de barbáries cometidas por crianças e adolescentes, em nossos dias.
A violência em si não é nenhuma novidade para o ser humano. A mesma foi companheira presente durante toda história da humanidade. Como instrumento para revoluções, golpes, para o controle social, para definir fronteiras políticas, ideológicas e etc. Em todos os tempos, em todos os espaços onde seres humanos interagiram, a violência deixou sua marca. O que chama a atenção na violência dos nossos dias é a sua banalidade, a crescente falta de sentido ou instrumentalidade com que atos de violência são cometidos na sociedade ocidental contemporânea. Mesmo quando existe uma finalidade aparente para atos dessa natureza, como nos casos de roubo ou extorsão mediante seqüestro, os níveis de crueldade utilizados na ação superam em muito o "necessário" para a consecução dos objetivos. Talvez a violência infantil seja o exemplo mais chocante e mais claro do tipo de violência que predomina hodiernamente: uma violência desprovida de qualquer significado emocional ou cognitivo, fria e cruel, que se justifica por ela mesma.

1 - A VIOLÊNCIA FANTÁSTICA

Paralelamente à violência material e física um outro tipo de violência vêm crescendo de forma assustadora em nossos dias: aquilo que poderíamos chamar de "violência fantástica", a violência que é produzida a nível da fantasia. A violência fantástica teve como um de seus maiores difusores o cinema norte-americano, sendo sua linguagem incorporada pela televisão, pela industria de brinquedos e, mais recentemente, com grande sucesso, pelas produtoras de jogos de video-game e computador. O grande apelo da industria da violência fantástica é exatamente utilizar fantasias de violência - de guerras, assaltos, perseguições, fugas, atropelamentos, massacres, estupros e etc. - como distração e divertimento para as pessoas. Embora tenha um grande apelo entre todas as faixas etárias, sexos, raças, religiões e etc., as maiores consumidoras deste tipo de violência são exatamente as crianças, em geral com o consentimento de seus pais. As crianças assistem filmes, desenhos animados e seriados como Rambo, Cobra, Comandos, Changemans e milhares de outros; compram seus bonecos, veículos, suas roupas e principalmente suas armas; e finalmente compram suas aventuras na tela do computador ou video-game e incorporam seus heróis doentios, sanguinários, covardes e diabólicos.

2 - A BRINCADEIRA É COISA SÉRIA

A brincadeira é um comportamento encontrado não só entre seres humanos, mas entre várias espécies de animais complexos. Segundo os estudiosos da Psicologia a brincadeira não serve somente para divertir e dar prazer às crianças, mas é um mecanismo de fundamental importância no desenvolvimento do ser humano e na formação de sua personalidade. A brincadeira tem a função de exercitar a coordenação motora, as habilidades de compreensão e solução de problemas, assim como de promover a integração social do indivíduo. Do mesmo modo se tem observado que, no ato de brincar, o ser humano projeta a sua percepção da realidade, reproduzindo na brincadeira o seu mundo. Dessa forma a brincadeira tem sido usada também como ferramenta de avaliação psicológica e de terapia. Mesmo a agressividade nas brincadeiras, em pequena medida, faz parte do desenvolvimento normal da criança, do modo como ela descobre os seus limites e os do outro.
Cada vez mais, entretanto, o mundo de fantasia da criança tem se deslocado das brincadeiras individuais ou em grupos para a televisão. De uma forma geral as crianças hoje passam mais tempo assistindo televisão que em qualquer outra atividade. Da mesma forma, cada vez mais a televisão exibe mais cenas de violência, e cenas cada vez mais cruéis e chocantes. Em princípio esse deslocamento da atividade de brincar para a relativa "passividade" de assistir televisão já apresenta prejuízo em dois aspectos: 1) a criança que deixa de brincar para assistir televisão não desenvolve satisfatoriamente a consciência do seu próprio corpo e nem exercita sua coordenação motora. 2) a criança que deixa de brincar para assistir televisão perde no desenvolvimento de sua integração social, de sua capacidade de comunicação e de articulação coletiva. Um terceiro aspecto de conseqüências tão ou mais graves é que geralmente a televisão serve como ponte privilegiada para introduzir a violência na fantasia da criança. Vários estudos têm sido realizados, sobretudo mais recentemente, quanto aos efeitos da violência na televisão sobre as crianças e adolescentes. Segundo os especialistas a influência da programação de violência sobre crianças e adolescentes se dá em três níveis: a aprendizagem de atitudes e comportamentos agressivos; a dessensibilização quanto à violência no mundo real; e o desenvolvimento de um medo do mundo - a "cultura do medo".

A aprendizagem de atos e comportamento violento.

Conforme o que tem estudado a Psicologia do Comportamento, uma das formas mais eficientes de ensinar e aprender comportamentos chama-se "modelagem". A modelagem consiste basicamente na imitação de um personagem tido como modelo quando este apresenta um comportamento bem sucedido. Quando observamos o mundo ao nosso redor percebemos quais comportamentos são bem sucedidos e temos a tendência de imitá-los. As experiências têm demonstrado que a modelagem é igualmente eficiente mesmo quando mediada por uma tela de TV ou computador. O poder da modelagem é ainda maior quanto maior for a identificação entre o modelo e a pessoa que observa. Nesse sentido a televisão e principalmente os jogos de video-game e computador são uma verdadeira escola de violência. A forma preferida e mais eficaz para a solução de problemas de praticamente todos os "heróis" da televisão e dos "games" é a violência. E o nível de identificação entre o público e esses modelos chega a ser hipnótico.

A "dessensibilização"

Outra conseqüência nefasta da convivência com esse "mundo fantástico da violência" é a perda da sensibilidade em relação à dor, ao sofrimento e à violência no mundo real. Não há mais cena horrenda ou abominação que assuste as nossas crianças! Tem-se a impressão de que os nossos adolescentes estão ensaiando para viver no inferno! Não só as crianças e os adolescentes mas os próprios adultos de hoje passaram e têm passado pelo processo de dessensibilização. Ao invés do choque e da indignação, as cenas da violência do cotidiano hodierno despertam a curiosidade e o interesse mórbido das pessoas. Quando não lhes desperta prazer e aventura: como quando os adolescentes vibram nas ruas com uma batida, um atropelamento, ou pedem freneticamente para um suicida atirar-se de um edifício. Essa é uma realidade que contraria frontalmente o princípio cristão da com-paixão (sentir a mesma dor). Se a infância do bom samaritano fosse semelhante à de uma criança dos nossos dias, provavelmente ele teria curiosamente observado a morte do "próximo", ou quem sabe saído em perseguição aos ladrões.

A "cultura do medo"

Ao mesmo tempo em que crianças e adultos expostos à violência fantástica perdem a sensibilidade quanto à dor e ao sofrimento alheio, vivem num estado de permanente tensão e medo de serem vitimados, e numa constante postura defensiva que chega a ser perigosa para os que estão próximos. É enorme e crescente o número de vítimas de acidentes com armas de fogo, por exemplo. E mesmo assim a sociedade e os congressos brasileiro, norte-americano e de outros países relutam em limitar e restringir a produção e o consumo dessas armas porque o cinema e as industrias bélicas conseguem convencer a população de que necessita delas, pois servirão para a sua proteção. Da mesma forma, enquanto milhões de pessoas morrem de fome e doenças simples no mundo inteiro, milhões de dólares são desperdiçados com armas e pesquisas bélicas porque as pessoas acreditam que carecem de defesa, umas das outras. Ao invés de "preparar as crianças para o mundo real", como advogam alguns, a convivência com imagens, jogos e brinquedos violentos as torna emocionalmente vulneráveis, inseguras e dependentes, conforme demonstram as pesquisas, levando-as, quando adultas, a recorrer a objetos ou símbolos externos - como armas - para se afirmar.


Gustavo Gilson Sousa de Oliveira é psicólogo, pela UFRN, mestre em sociologia, pela UFPE; e pesquisador sobre violência urbana. É ministro da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Recife/ PE.